Mantenha a distância!

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Esperava a minha vez. Foi ontem, de tarde. Estava na fila. Mas na realidade não havia fila. Havia somente uma pessoa à minha frente a despejar as mercadorias encima do tapete rolante. Olhei para o chão. Vi uma risca com as seguintes palavras escritas: “Mantenha a distância de segurança.” Ri-me. Pareceu-me absurdo! De repente estava na autoestrada, a travar com o pé. No entanto, não estava no meu carro. Somente no meu corpo. Parada, a olhar para o chão. Senti um desejo de sacar o meu telemóvel do saco, tirar uma fotografia e coloca-la no Facebook com uma piada a este respeito. Mas resisti a tentação e permaneci quieta. Perguntei-me se era vergonha de tirar a foto no meio de um supermercado. Mas sabia que não era isso. Era outra coisa. Era como se este momento merecesse outro tipo de reação. Veio-me à memoria de ouvir na radio, enquanto estava a guiar, uma voz feminina a dizer que deixou de guiar e de possuir um carro porque os carros nos transformam em maquinas de morte. Percebi. Algumas vezes já dei graças pelo acidente que não aconteceu. E agora, parada aqui na fila, senti o absurdo de poder ser também uma espécie de máquina de morte – sem vontade, sem consciência.

Tenho refletido muito sobre a particularidade desta doença: como é que uma pessoa não tem sintomas nenhumas e outra fica gravemente doente e morre? Não me refiro, nesta reflexão, às respostas biomédicas a esta pergunta. Refiro-me a o que posso aprender de forma filosófica. Sei que pouco sei de cada pessoa que se cruza no meu caminho, mesmo quando penso que sei muito. E se for assim, cada encontro é um novo momento de oportunidade de descoberta, de partilha e de esperança – mesmo tendo que manter a distância!


Texto publicado num blogue colectivo sobre os tempos vividos em contexto de pandemia.